Carne e osso Antonio Vasques

Elemento ambíguo e misterioso, à primeira vista a boneca pode parecer fácil de entender...

A boneca é o tema da mostra Carne e Osso, uma série inédita de trabalhos feitos em porcelana e pintura pelo artista visual Antonio Vasques.

A exposição é o resultado de uma longa pesquisa do artista sobre a boneca e sua potência visual e de significado. Entre porcelana e pintura, explora o caráter de sujeito e, simultaneamente, de representação desse objeto que existe entre mundos. É também a primeira mostra individual de Antonio Vasques.

“Elemento ambíguo e misterioso, à primeira vista a boneca pode parecer fácil de entender, mas borra a linha entre objeto vivo e inanimado. Esse objeto depende de nós para se aventurar em nosso mundo de movimento. Sugere uma identidade, uma vida interior, quem sabe um conjunto de intenções secretas. Remete à existência de um mundo próprio onde podemos experimentar outras personas e vivências. Essa dualidade pode atemorizar os mais desconfiados ou fascinar os curiosos, mas dificilmente a boneca passa despercebida ou é esquecida pelo ser humano, existindo desde tempos pré-históricos”, explica o artista.

Antonio Vasques é artista visual e ilustrador. Vive entre o mundo das duas e três dimensões desde pequeno, quando ilustrava e depois modelava muitos mundos ficcionais e personagens dos filmes e desenhos, experimentando com todo tipo de material que achava em casa. Graduando em artes visuais pela UFRGS, trabalha com diversas técnicas, principalmente pintura e cerâmica, e sua fascinação pelas bonecas e miniaturas continua crescendo.

 

“Elogio às mãos”[1]

Tenho acompanhado de perto o trabalho de Antonio Vasques e gostaria de analisar alguns aspectos dessa produção que nos traz gratas surpresas tanto formais quanto conceituais. Vasques encontra-se entre aqueles artistas que são possuidores de extrema habilidade técnica, mas que não se deixam cair no vazio do mero virtuosismo. Desenhista e ilustrador de exímia competência e riqueza criativa, tem, por hobby, o colecionismo de bonecas. Participa de eventos e mantém contato com colecionadores de outras localidades do país e do mundo.

O universo do colecionador torna-se ponto de partida para Vasques pensar seu trabalho no campo da arte. Suas bonecas migram para a pintura e corporificam-se na argila e, posteriormente, na porcelana.

O uso das bonecas na arte moderna e contemporânea já nos é conhecido. Lembremos aqui de Hans Bellmer, Niki de Saint Phalle, Pierre Molinier, Melissa Ichiuji, os irmãos Chapman, entre muitos outros. Na maior parte das vezes, são produções que evocam certa perversidade sexual, tratam do fetiche, da objetificação dos corpos, principalmente do feminino. Normalmente tratam de forma explícita da transgressão e da violência. O uso da boneca no campo da arte instaura, a princípio, questões relativas ao interdito e ao tabu[2].

A boneca é um objeto carregado de potência. Apresenta um caráter ambíguo, reminiscente de uma experiência remota compartilhada por todos nós quando essa se fazia brinquedo. Traz consigo o embaralhamento das fronteiras entre animado/inanimado, vida/morte, homem/máquina, natureza/cultura. Vem daí a “inquietante estranheza” que suscita.

Conforme nos lembra Lotman, a boneca guarda algum parentesco com a estatueta, “a imagem tridimensional do ser humano”, mas dela se distingue. A estátua é para ser vista, a boneca para ser tocada, manipulada; a estátua nos oferece um texto, aquele da arte. A boneca, enquanto brinquedo, permite a produção de texto[3]. Como um duplo reduzido de nosso corpo, a boneca ocupa o espaço de um devir. Animando-a, projetamos nela nossas experiências, desejos e frustrações.

Antonio Vasques trabalha as bonecas de forma distinta dos artistas citados acima. Não há apelo ao perverso ou ao abjeto. Tanto as pinturas quanto as porcelanas de Vasques falam da delicadeza e da fragilidade dos corpos. Cuida dessas imagens com a mesma paixão do colecionador ou, então, de um escultor enamorado.

O título que dá nome à mostra não é sem razão: Carne e Osso refere-se, entre outras coisas, à própria materialidade da qual as obras tomam forma. Seria possível dizer que a carne está para a cor/pintura como o osso para a alvura da porcelana. Não foi em marfim que Pigmalião deu corpo a sua paixão? E não foi o rubor de Galatea, provocado pelo beijo, um dos sinais da metamorfose? O branco e o vermelho têm aqui significado essencial.

Antonio Vasques empreende o casamento entre as linguagens, levando-nos a refletir sobre os imbricados jogos de representação. Representações de representações, em um vai e vem entre o bi e o tridimensional, as bonecas de Vasques ganham vida, encarnam-se e nos olham. Habitam nosso espaço. Murmuram em suas caixas de vidro, talvez dizendo de nossa presença. Mas é na superfície da tela que o artista se autorrepresenta ao mesmo tempo em que inscreve seu “elogio às mãos”. Mãos que criam, cuidam, sustentam, transformam, tocam, modelam, pintam, alimentam e afagam. Mãos que dão vida a esse duplo cujo destino e desejo é viver para sempre.

Marilice Corona
Artista visual, Profa.Dra. do DAV e do PPGAV do Instituto de Artes da UFRGS

 

[1] Referência ao texto de Henri Focillon.
[2] Ver o catálogo Poupées et tabous : le double jeu de l’artiste contemporain.
Acessar : http://www.somogy.fr/livre/poupees-et-tabous?ean=9782757211007
[3] LOTMAN, Yuri M. “Las muñecas en el sistema de la cultura” in: Muñeca. Org. BETTINI, Maurizio. Ed. Casimiro: Madrid, 2015.


Endereço:
galeria hipotética
Visconde do Rio Branco, 431
bairro Floresta | Porto Alegre, RS
(51) 3013.2015

Data: 19/10 — 08/11/2018

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