Tem alguém escutando rádio aqui perto enquanto penso em como iniciar este texto. Toca Shiny Happy People, do REM, e na hora estou de volta aos anos 1990. Outro tempo, outro mundo, outro tudo. Mas a música reverbera através disso e tem o poder de nos levar de volta a uma determinada época ao mesmo tempo que nos impulsiona a seguir em frente. Quando Thiago Krening postou em uma rede social sobre o projeto de um quadrinho ambientado no DCE (antiga boate de Santa Maria que, se você ainda não conhece, vai conhecer um pouquinho aqui), minha primeira reação foi: quero muito ler essa história. A segunda foi: e se a gente lançasse pela editora hipotética?

Entre 2015 e 2020, fui sócio (ao lado da Iriz Medeiros) da galeria hipotética, espaço de arte em Porto Alegre dedicado às artes gráficas (quase sempre deixadas de lado pelo mundo tradicional das artes). A galeria começou muito antes de existir fisicamente, uma ideia que foi sendo moldada até chegar ao formato que existiu por cinco anos. Fizemos algumas dezenas de exposições que contemplaram um universo de quase cem artistas ao longo da existência do espaço físico.

O que sempre nos moveu foi a intenção de encontrar trabalhos interessantes de artistas interessantes que muitas vezes não têm o devido reconhecimento. O que o tempo nos mostrou é que ideias não precisam necessariamente de um espaço físico para seguirem em frente, e essa intenção, de encontrar trabalhos legais e aproximá-los do público, pode se materializar de várias outras formas, como, por exemplo, em uma editora – algo que desde o início esteve nos planos hipotéticos.

Sem a obrigação de um espaço físico, a editora hipotética pode se permitir existir no tempo que for necessário, sem a pressão de ter muitos lançamentos, podendo focar em um projeto por vez enquanto encontra o próprio caminho, fugindo do pensamento exclusivamente comercial e indo contra essa velocidade que nos consome enquanto devora tudo ao redor. O contexto não está favorável para esse tipo de iniciativa. Mas, até aí, quando estará?

Volto para os anos 1990. Enquanto eu observava a página em que os personagens da história descem a estreita escadaria que dava acesso à Boate do DCE, me veio um fluxo de recordações materializadas na minha carteirinha do ano de 1999, com foto, que guardei junto com outras lembranças. Se antes ela dava acesso à melhor pista que já fui na vida (e que nunca será substituída, pois é parte da minha memória afetiva), agora dá acesso a uma sensação de nostalgia. E essa sensação, em vez de me prender ao passado, me impulsiona a seguir em frente, me faz querer seguir adiante, um impulso que anos atrás fez surgir a galeria e agora faz surgir a editora.

Este livro que você tem em mãos é o primeiro quadrinho da editora hipotética, em parte mérito do grande Thiago Krening, que pegou aquela sensação de nostalgia e a transformou em HQ. Obrigado ao Thiago e a você que nos lê por descer ao porão e fazer essa viagem no tempo com a gente. Enquanto a música tocar, shiny happy people holding hands!

Fabiano Denardin
colaborou Iriz Medeiros
(*Em memória de Ivan Fiedoruk, que amava reclamar do DCE.)

Este texto foi publicado como uma das introduções à edição impressa de Um lugar do caralho.